Mestre em educação, venezuelano recomeça vida no Brasil

Fonte: Catraca Livre

Há um mês e meio em São Paulo, o venezuelano Gustavo Moncada Guédez esboça em um pedaço de papel o mapa de seu país para explicar a extração de recursos minerais destinados, segundo ele, à China. O tom professoral alude aos 38 anos de carreira letiva que foi obrigado a abandonar para recomeçar a vida no Brasil.

Era maio de 2018, o sexagenário partiria de Acarigua, no noroeste venezuelano, para cruzar metade do país de carro até chegar a Santa Helena de Uiaren, na fronteira com Pacaraima (RR). Para além dos mais de 1.400 km percorridos, Gustavo deixara para trás esposa, o filho, amigos, trabalho e uma vida inteira de lembranças. Na capital roraimense, Boa Vista, se juntara à filha e ao genro que anos antes encontraram refúgio em território brasileiro.

Desempregado e debilitado pelos efeitos de uma diabetes tipo 2, o professor de ciências sociais chegava ao Brasil com dois objetivos: conseguir assistência médica para o tratamento da sua doença e uma nova fonte de renda para ajudar a família.

Nos primeiros dois meses em Roraima, Gustavo exerceu diversas atividades, como voluntário em um programa de apoio a refugiados da ONU. Com o tempo, entretanto, descobriu que as oportunidades ali eram limitadas. Além disso, a grande presença de venezuelanos na cidade provocava um clima de competição pouco amistoso entre os 277 mil habitantes da capital mais setentrional do país. “Boa Vista não estava preparada para o impacto migratório venezuelano. E muito venezuelano não estava pronto para imigrar. Aí houve um choque cultural, há um impacto cultural, porque o venezuelano tem uma maneira diferente de ser.”

Uma vida dedicada à educação

Com mestrado em Educação e pós-graduação em Sociologia, Gustavo teve boa parte da vida dedicada ao ensino em sala de aula.

Trabalhou como professor universitário até 2018, quando testemunhou o colapso econômico que envolveu seu país nos últimos meses, em meio à falta de emprego, assistência médica, educação e até itens básicos para a sobrevivência, como água, luz ou comida.

Ele explica que, apesar de o governo oferecer um seguro social, a realidade econômica é um desafio para a sobrevivência. “O que ganhamos não serve para nada, porque vivemos uma superinflação na Venezuela. Onde o salário mínimo não está de acordo com as necessidades da população. A cesta básica é inalcançável. Chegou um momento em que eu, minha esposa e meus filhos não podíamos cobrir nossas necessidades. Minha esposa enferma, eu enfermo, só tínhamos uma opção: ou se cura ou come. Ter uma alimentação de qualidade, que sustente, não é a realidade de muitos venezuelanos que, muitas vezes, passam dias sem comer.”

Os anos de estudos debruçados sobre temas socioeconômicos permitiram a Gustavo uma visão privilegiada do panorama histórico venezuelano. Para ele, seu país vive hoje uma deterioração social, econômica, moral e cultural. Não levanta bandeira de nenhum partido. “Mas não sou político, sou acadêmico. Não sou ultra-opositor do governo nem apoiador da oposição. Apenas não sou indiferente. Eu sou analítico, interpreto por meio de um ponto de vista sociológico.”

Avalia também o contexto em que se insere a imigração venezuelana, segundo sua opinião, dividida em três categorias: as famílias que saíram primeiro, possibilitadas pela condição financeira. Em seguida, os que tinham condição, mas que deixaram parte da família e, por último, todos os desesperados, que, sem nada a perder, partiram em busca da própria sorte. “Estou entre a segunda e a terceira, já que precisei deixar minha família, vender o carro e boa parte dos bens que tinha para começar uma nova vida aqui.”

Recomeço 

Desde que chegou a São Paulo, Gustavo vive em um centro de apoio a refugiados mantido pela Fundação Fé e Alegria, localizado no bairro do Cursino, zona sul da capital paulista. Lá, ele e outros 18 refugiados têm direito a casa e comida enquanto buscam uma oportunidade de emprego na maior cidade da América do Sul.

Sua rotina é marcada pela entrega de currículos durante a semana, quando sai às 7h da manhã, batendo de porta em porta atrás de emprego até o fim do dia. Aos domingos, dedica seu tempo de descanso para lavar roupas.

No fim de março, ele e um grupo de 13 venezuelanos participaram do projeto  “Novos Caminhos”, realizado pela Tembici em parceria com o Instituto Aromeiazero e com o ACNUR, a agência da ONU para refugiados no Brasil.

No curso, os participantes aprenderam técnicas de mecânica, reforma e reparos básicos em bicicletas, segurança no trânsito, mobilidade na cidade, além de relações no mercado de trabalho. Ao todo foram 32 horas de aulas, com transporte, material e certificado garantidos pela Tembici.

Enquanto nenhum trabalho aparece, Gustavo luta contra o tempo, já que tem direito a três meses de moradia no centro de apoio.

Disposto a aceitar qualquer oferta de emprego, o professor universitário reflete: “Venho aqui com tudo o que tenho, estou em São Paulo há um mês e meio. Estou aqui para fazer qualquer coisa, pode ser até lavando louça, não tenho problema com isso. Eu sou uma pessoa que sempre digo: aquele que não aprende o novo não quer ir adiante. E quem tudo sabe não sabe de nada, já diria o filósofo”.

Apesar disso, lamenta a situação que vive, após quase quatro décadas dedicadas à profissão. Aos 60 anos, vê seu sonho de um futuro tranquilo roubado. “Para mim me sequestraram, me assaltaram depois de 38 anos trabalhando e buscando tudo. Eu trabalhei para estar tranquilo, ao lado da mulher, sentado com meus amigos e viver. E agora tenho que começar de novo, do zero. Não tenho mais o ímpeto da juventude, mas tenho discernimento para saber o que procurar.

Nesta semana, o professor universitário tem a primeira entrevista marcada desde que chegou a São Paulo: para trabalhar como ajudante de cozinha em um restaurante no Brás, na zona leste, com salário de R$ 1.400. O que ele acredita ser o primeiro passo para o recomeço. “Minha meta é trazer minha esposa e meu filho, a meta mais urgente. Talvez voltar à educação, mas preciso regularizar minha documentação, meus títulos, para quem sabe um dia voltar à sala de aula.”

Fonte: Catraca Livre/ André Nicolau